Pedes-me um texto de amor à pátria portuguesa e eu ando em processo de divórcio litigioso.
De facto, feitas as contas, pouco mais me deu que memórias, história, sonho, aventura e um nome lusitano. Antigo, verdadeiro, montanhês de primeira geração. E como tal, inconformado e rebelde no momento em que me pedes tal esforço.
Gerida de mão em mão, não me revejo nem nos valores, nem nos organismos, nem nos colectivos onde está a desaguar. Sei que é um corpo que eu amei muito e custa-me vê-la ser possuída por cantores de cozinha, cabra, carreira, amor pimba e outras selvajarias culturais. Custa-me e magoa-me que ignore o grande amor de uma vida que dei por ela. Culto, desinteressado e sincero.
Garça! De vez em quando é assim. Tem crises de identidade. Houve uma altura, até, em que andou amancebada sessenta anos com os espanhóis. De momento tem ligações distraidas com a Cultura, cuida mal do Património, esquece-se dos pobres, gasta milhões fora de sitio, mantém os funcionários publicos em dieta rigorosa, adula empresários e esquece os artistas. Talvez por isso, falando noutro dia com Virgílio Ferreira, Jorge de Sena, Zeca Afonso, Camões, Sá de Miranda, Miguel Torga, Eça, Carlos Paredes e outros companheiros de uma tertúlia que eu frequento, onde apenas entra gente de um só parecer de um só rosto e duma só fé, posso adiantar que nenhum deles andava satisfeito com o comportamento último desta ingrata.
Para onde vai, acho que, de momento, nem ela sabe. Ultimamente, de resto, não Ota nem desota.
Luto há quase 40 anos pela cultura. Todos os dias. E, afinal, até já foi ou vai ser despenalizado o não saber escrever. Teremos portanto, licenciados e doutores; professores, médicos - até engenheiros!...- literal e literariamente analfabetos. Custa muito.
Sim, eu sei. As separações são sempre difíceis. Devia acalmar-me. Conseguir separar o trigo do joio. Mas onde anda o trigo de tão esquecido e destruído? Como pode sobreviver a tanta tempestade? E porque se promove o joio como se fossem jóias? Porque não acusar que, de tantos heroísmos passados, tantas praças passadas a fio de espada, tais cometimentos hoje andem ao nível e estejam convertidos em helicópteros compradinhos já avariados? Nah. Eu quero Mem Ramires, Geraldo Geraldes, o sem Pavor; quero o Condestável, Vasco da Gama, Gago Coutinho, Humberto Delgado, Salgueiro Maia! Eu quero heroísmo. Já. In nomine patria. Eu exijo a minha dose actualizada de heroísmo.
Mando-te portanto, poemas escritos em tempo de melhores sentimentos; são recordações de quando éramos felizes. Tenho também fotografias dela, toda exposta, nua, gloriosa, tiradas em momentos de excesso e intimidade que mal ouso agora relembrar. 5 de Outubro 1910, de barrete frígio e busto amante; 25 Abril de 1974, de cravo ao peito, gritando liberdade. E outras. Guardo-as para mim. Por egoísmo e um resto imenso de amor com que a quero lembrar, apesar do exílio a que me forçou.
Fica portanto isso, a gastronomia e as mulheres. O mar e a montanha. O idioma, um pouco átono, mas bonito, versátil, elegante, cheio de perifrásticas doces e requebros de alma. E os músicos e poetas, lavradores de palavras e encanto.
Mas recuso-me a enviar-te cartas de amor a essa senhora. Sei que - na tua única faceta lésbica conhecida - és profunda amante dela. E respeito. Mas eu ando zangado, pronto. Mando-te um poema e inclui na revista. Fica original e cumpre a função. Acho que o Deuladeu é subtil e merecedor. Não sei. Escolhe. Eu nao quero mais saber.Demito-me.
Mas não me peças neste momento, cartas de amor a essa senhora voluvel, de porte desigual. Erudita e esbelta no mar e na montanha; corrupta e podre nos lobis e nepotismos varios; inteligente e grácil na poesia e no cante; pesada e bisonha na delação e na intriga. Carregada de ouro e facilidades para todos os que não merecem e eu, que lhe dei o melhor de mim, a ver o tempo passar. Ingrata.
Orgulho nacional? Neste momento?! Pode ser que me assalte e eu recaia um dia destes. As paixões eternas são assim. Mas de momento, estou em greve. Estamos zangados. Não escrevo!
Pedro Barroso