24.4.12

ébano


Paulo atingia o meio século naquela noite solarenga em que conseguira reunir os seus três filhos no seu faustoso solar de Cascais.
Naquela sala, estavam alguns dos seus colegas de armas, solidários naquele capim africano, de uma Luanda plena de mil cuanzas.
Recebia-os como se fossem irmãos.
De um outro sangue.
 Mais verdadeiro.
Ao som da última badalada da meia-noite, ele recordou Flora, uma mestiça que conhecera na primavera das savanas e que amara no calor luxuriante dos trópicos.
Na mesma noite em que o seu camarada João tombara morto na lama colonial de uma guerra que nem sempre entendera, Paulo soubera que havia um filho parido no ventre de Flora.
Com medo da sua juventude, optara por esquecer essa negra impala e regressar ao continente.
Um neto ligou a televisão e logo se viram imagens de um Ministro da Justiça de Angola, discursando com a voz de fogo.
A marca negra no topo da sobrancelha direita do palestrante, a mesma de todos os primogénitos da família de Paulo, não deixava margem para dúvidas. Nesse instante, viu Flora nos olhos daquele político e releu a antiga paixão.
Sem hesitar, Paulo tomou uma decisão.
Irrevogável.
Com o balanço das onças africanas, humedecendo o coração com o cacimbo do entardecer, fechou-se no quarto e telefonou para o seu advogado - era chegada a hora de mudar o seu testamento e deixar entrar mais uma ave de ébano na sua existência.
Por amor a Flora.
Para dar sentido a essa guerra...

10.4.12

f.

Há quem te chame menina,
Te dê rebuçados
E te ponha flores no cabelo,
Há quem te diga coisas bonitas,
Te vista de seda fina
E te dê tudo o que há de belo,
Há sempre quem te embale
Enquanto adormeces na cama
E te aconchegue os cobertores
Para que não se te encoste o frio...
Há quem te chegue voz que ama,
Com doçura, ao ouvido,
Quem te esconda debaixo de asa
Quando erras o caminho de casa
E até quem te ajude sem saberes.
Há-de haver um dia alguém
Que te vai levar, porque queres,
Para lugar de além,
Há-de haver um dia alguém
Que vai partilhar-se contigo,
Que vais dividir com alguém
A quem chamarás menina
E dês rebuçados,
Ponhas flores no cabelo,
Digas que amas sem segredo...
Há-de haver um dia alguém
Que te vai abraçar
Até a vida não te sobrar...