1.12.11

luis Osório sobre Hermam José

Não deixa de ser curioso que nunca tenha falado de Herman José. Principalmente porque continuo a ter presente a primeira vez que o escutei.
Foi em sua casa, num prédio onde também morava o ainda não primeiro-ministro, José Sócrates. Duraram algumas horas as minhas perguntas e as suas respostas, horas em que me disse o que não esperava – acerca do pai e da adesão a Hitler, sobre um rapaz a quem trata como um filho ou do desencanto e da falta de paciência para aturar o mundo.

Afirmei-lhe no início o que ainda hoje penso: os que vão aparecendo fazem-nos ter saudades do velho e revolucionário Herman. Saudades que não são um exclusivo dos que o acompanharam ao longo dos últimos quase quarenta anos. Senti que também as tinha: «Devo a minha carreira à pequeneza de que somos feitos. A partir de determinada altura tinha um Rolls Royce, piscina, barco e era visita de casa de todos os poderosos. Não, Luís. Não me arrependo de, em alguns momentos, ter mergulhado no pântano em troca de dinheiro. Quando vemos uma grande senhora do teatro ou da música, com um vestido e jóias emprestadas, a agradecer a homenagem que lhe fizeram e a sair em braços como se fosse uma diva, julgamos que tem uma vida cómoda. Mas depois regressa ao seu apartamento suburbano e percebo que não faz sentido. Um professor universitário pode ter apenas um dois cavalos, alugar um apartamento em Queluz e ser muito feliz – a sua compensação interior é de tal forma que apenas precisa de um computador e das pessoas que gosta. Um artista, não. Vive deprimido e numa constante mentira».

Soube fugir disso. Só que a vida está longe de ser linear. O tempo gasta-se e o vazio é sempre um buraco, tantas e tantas vezes não sabemos como o travar. Nesse primeiro encontro poucos eram os que vaticinavam que alguém, como aconteceu depois com Ricardo Araújo Pereira, pudesse colocar em causa a sua popularidade. Mas o criador de Diácono Remédios e de tantos outros personagens sabia que o dia podia estar perto – chegara ao momento em que se fazem os balanços entre o deve e o haver, balanços em que se perguntou se devia fazer mais um personagem do Norte – «não, porque já fiz o Esteves e o senhor engenheiro»; ou criar um personagem original de mulher – «mas como, já inventei 18 mulheres»; ou um alentejano – «já fiz, já fiz»; e que tal compor e cantar novos temas – «já cantei em inglês, francês, alemão, português, espanhol»; então por que não tocar piano se tantos lhe gabavam o talento – «meu Deus, toquei piano toda a minha vida».

Fez, viu, conheceu. O drama de quem fica na história, num rodapé ou em capítulos inteiros, é o que fazer quando tudo parece já estar feito. Nos artistas, pelo menos nos que conheço, isso amplifica-se com o peso do espelho.

Muitos o dizem. Herman é um homem inteligente, rápido, culto. Também me pareceu, sim. Um actor que se foi habituando a uma máscara de solidão e glória; máscara que se transformou rapidamente na cara que passou a usar todos os dias. Solitário, claro, muito. A certa altura, beato de paternidade, perguntei-lhe pelos filhos que nunca teve e pelos vazios que nunca saberá que ficaram por preencher. O que me levaria a mim a uma afirmação tão absoluta, quis saber. Não que tivesse filhos biológicos, mas tinha alguém que o chamava de pai. Um rapaz, filho de um amor da juventude a quem, numa altura em que a relação entre os dois chegara ao fim, lhe pediu para a engravidar. Corriam os primeiros anos da década de 1980. Herman não aceitou. No entanto, sabemos que as mulheres são obstinadas e ela acabou por fazer o que planeara. Não com Herman, sim com um sueco que achou ser o mais parecido com o que conhecia do amor. Nasceu o rapaz e Herman José tornou-se pai honorário.

Impressionou-me a forma como falou do pai. Ouvi-lhe um telefonema em que, carinhoso e provocador, lhe pediu para ter cuidado com os cães quando saísse à rua porque o podiam confundir com um osso. Quando desligou o telefone virou-se para dentro de si e falou dele muito tempo ou, pelo menos, assim me pareceu. Falou como se estivessem em silêncio.

A ver se me lembro. Nascido em Ayamonte e filho de um alemão e de uma espanhola, chegou a Portugal aos dez anos para nunca mais sair. Entretanto Hitler subiu ao poder e aderiu ao nazismo com convicção e juventude, convicção que o levaria às fileiras do III Reich se não tivesse sido acometido de uma febre reumática que o retirou de combate. O seu irmão, e tio de Herman, não teve a mesma sorte e esteve preso num campo de concentração soviético.

Lembranças difíceis. Mais do que as memórias traumáticas em que Herman o acompanhava, em troca de 25 tostões, nas peregrinações ao Estádio de Alvalade: «Eram jogos atrás de jogos. Começávamos pelos infantis e íamos por aí fora. Um dia saímos de um jogo de manhã, como se fosse possível ver futebol com aquela luz da manhã a bater na cara, e fomos a uma fonte em frente ao Estádio. O pai lavava aí os vidros e os faróis. Ao mesmo tempo ouvíamos o relato de um jogo entre o Torreense e outra equipa qualquer. Estava cheio de fome e ansioso para voltar aos brinquedos, um verdadeiro trauma».

Contou-me a história do nazismo com a maior das naturalidades. Talvez não o conseguisse se estivesse no seu lugar. Passei a vê-lo com outros olhos – passei a vê-lo não apenas como a estrela desinteressante e gorda de ego, mas como um homem com a densidade de todos os que são verdadeiramente contraditórios. Talvez por isso o 25 de Abril transportou-o para territórios impensáveis: fez os coros do hino do Avante!, cantou o hino da Intersindical e foi um dos intérpretes do ‘Força, Companheiro Vasco’. As pessoas que cantavam e dançavam estavam no Partido Comunista e foi sempre entre os que se divertiam que desejou estar um dos mais talentosos entre os talentosos. «Tenho sempre enorme cuidado em satirizar os comunistas. Porque são os que têm menos em troca. Acho que quando brinco com eles sofrem mais do que os outros».

O 25 de Abril moldou Herman José. Assim como o PREC e as primeiras eleições livres. Mário Soares ganhou-as e escolheu para Ministro das Finanças um jovem meticuloso e incorruptível: Henrique Medina Carreira. Estive com ele esta semana, tomámos um café num centro comercial. Conto-lhe para a semana.

Tags: Ficheiros Secretos, Opinião, Luís Osório

Sem comentários: